domingo, 15 de maio de 2016



A LETRA CURSIVA NA BERLINDA



Em tempos de era digital, o uso da letra manuscrita, sobretudo a cursiva, está ficando praticamente restrito à escola. No mundo do trabalho, dominado pelos computadores, muitos nem se lembram direito como escrever à mão, quanto menos fazer todas as “voltinhas” no caderno de caligrafia. Com exceção de poucos bilhetes ou assinaturas em documentos oficiais, até a própria escrita manual já é rara. Ninguém quer mais escrever no papel com medo de a letra parecer feia ou de não poder mudar de ideia e “deletar”. Enquanto isso, na sala de aula, as crianças passam anos aprendendo a desenvolver diferentes traçados até chegar, finalmente, à letra cursiva, quase sempre a mais complicada para os alunos.
Se o trabalho dos professores costuma ser grande e a aplicação prática é pequena, ainda vale a escola reservar tempo para o ensino da letra cursiva? Conhecer apenas a letra de forma não seria suficiente para ser alfabetizado hoje?
O tema é controverso e a resposta não é tão simples.
Para aqueles que defendem a necessidade da escrita cursiva, tecnicamente chamada de amalgamada, a principal justificativa para o ensino é a fluência, a rapidez que essa forma proporciona na hora de escrever, já que não é preciso tirar o lápis ou a caneta do papel a cada letra. Mas qual é a necessidade de ser tão rápido? Para poder tomar notas durante qualquer situação em que a tecnologia não esteja disponível.

Porém, se o uso de computadores, smartphones e tablets se tornar uma realidade nas escolas, ainda assim a letra cursiva teria seu espaço garantido? O especialista em alfabetização João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, acredita que ainda é cedo para colocar essa questão na ordem do dia das escolas. “Pelo menos por enquanto, mesmo nos países altamente influenciados pela tecnologia, a escrita ainda é muito utilizada nas situações práticas da vida. Seria temerário que as próximas gerações não cheguem à vida adulta com esses instrumentos. Se algum dia a escrita manuscrita for abolida, aí sim a escola não precisa se preocupar mais com isso”, afirma.

A escrita cursiva ainda é uma exigência em algumas provas, alguns vestibulares e concursos públicos. Mas muitos já passaram a aceitar também a letra de forma ou de imprensa, como também é chamada, desde que seja feita a diferenciação entre maiúsculas e minúsculas. E aí é que está o problema. Muitas pessoas saem do ensino fundamental sem saber fazer as duas formas. O professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Geraldo Peçanha de Almeida explica que na educação infantil muitas vezes os educadores passam três anos ensinando apenas a letra bastão maiúscula (ou caixa alta) para facilitar o processo de aprendizado. Depois a criança começa a aprender a letra cursiva e acaba não treinando suficientemente as letras de forma minúsculas. “E não se pode escrever tudo em letra maiúscula, é um erro ortográfico”, lembra. O docente ressalta que se a escola focasse no ensino dos dois tipos não haveria empecilho em escolher esta forma de escrita ao invés da cursiva se a criança se adaptasse melhor. “Se a escola ensinasse a maiúscula e a minúscula não haveria nenhum problema de a criança escrever o resto da vida em letra bastão”, resume.

Dificuldade de aprendizado

O processo de ensino da letra cursiva geralmente começa entre os 6 e 7 anos de idade e exige habilidades relacionadas à coordenação motora fina. Até pegar prática e fazer um traçado legível a criança demora cerca de três anos. Isso significa que, em média, por volta dos 9 anos o estudante terá desenvolvido a forma de escrita que utilizará ou não ao longo da vida – dependendo de como a tecnologia evoluir e a sociedade se adaptar às mudanças.

Não são raros os alunos que têm dificuldade para aprender a letra cursiva. E existem vários motivos associados ao problema. O professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Luiz Carlos Cagliari, acredita que a deficiência no aprendizado está relacionada à metodologia de ensino. “Em geral, vejo que crianças problemáticas com a escrita não apresentam o mesmo tipo de problema quando desenham. Então, há algo de errado com o modo como são ensinadas. Adotando várias etapas para se chegar à escrita cursiva fica mais fácil.”

Cagliari sugere o uso de gabaritos para facilitar a escrita, além de um pouco mais de paciência do educador, que pode deixar o aluno usar a escrita maiúscula ou bastão enquanto ele não se sentir à vontade com a forma concatenada. Entretanto, alerta que o maior problema é quando o aluno não sabe ler escrita cursiva, que muitas vezes é opaca aos olhos da criança, pois as letras não são tão separadas e diferenciadas quanto na forma bastão.

Geraldo Almeida defende que a letra cursiva seja ensinada mais cedo, ainda na educação infantil, para facilitar o processo. “A partir do momento que a criança reconhece na letra bastão que determinada marca é ‘A’, se ela reconhece esta marca para o som ‘A’, já pode ser introduzida a letra cursiva.” O professor da UFPR lembra que além da coordenação motora fina da ponta dos dedos, que costuma ser bem exercitada nas escolas e acaba sendo também naturalmente mais desenvolvida por causa da familiaridade das novas gerações com o teclado, é preciso trabalhar todo o segmento do braço para possibilitar a movimentação adequada durante a escrita.

De qualquer forma, Almeida acredita que a escola não deve ficar focada apenas na dificuldade da criança porque algumas podem nunca aprender a escrita cursiva, porém isso não significa que não sejam alfabetizadas. Ele diz que insistir nesta forma de escrita prejudica ainda mais o desenvolvimento do aluno. “Não seria o caso de a escola continuar batalhando para a criança fazer a letra cursiva porque esse bloqueio motor vai levá-la a um bloqueio mental também”, afirma. Nesta situação, o professor sugere que a instituição continue o processo de alfabetização desse aluno com letra bastão maiúscula e minúscula.

Cagliari insiste que o problema está mais no lado de quem ensina do que de quem aprende. Ele destaca que muitas escolas sequer passam aos educandos o conhecimento de como segurar o lápis de modo correto. “Alguns alunos começam a escrever como se fossem canhotos, colocando a mão acima da linha de escrita, porém usando a mão direita. Alguns escrevem segurando o lápis como se fosse um bastão e ao escrever não conseguem ver o que estão fazendo. Um pouco de disciplina artística no uso do material de escrita ajuda a evitar problemas.”



Espécie em extinção?

Qual teria sido a reação na época se alguém dissesse que o pergaminho e a caneta-tinteiro iriam desaparecer? Nem sempre as mudanças são vistas com entusiasmo em um primeiro momento. Será que a letra cursiva – quiçá a escrita manuscrita de forma geral – também está próxima de se tornar obsoleta? Os especialistas se dividem entre os mais puristas, que temem a perda deste conhecimento, e os mais vanguardistas, que acreditam que é preciso evoluir com a tecnologia. Porém, todos concordam que no momento atual a escrita ainda é uma necessidade social. “Do homem das cavernas ao homem moderno, precisamos da escrita por uma questão de cidadania”, afirma o professor da UFPR. Entretanto, ele mesmo acredita que esta realidade está com os dias contados e diz que se no mundo do trabalho a escrita manuscrita sobreviver por mais 10 anos, no ensino fundamental não passará de 50 anos, o que significa que os professores precisam desde já começar a debater a questão. “A letra manual não tem mais espaço na sociedade. Porque não temos mais o cronológico (tempo) disponível para ela”, dispara.

Já o pesquisador da Unesp não concorda que a escrita manuscrita, inclusive a cursiva, irá desaparecer das instituições de ensino nem da vida das pessoas na sociedade. Por outro lado, Cagliari admite que a escrita via computador poderá ser mais utilizada do que a caneta ou qualquer outra coisa. “Isso é próprio da evolução da civilização e quem não se adaptar irá ficar para trás, com muitos problemas. Portanto, a escola deveria usar cada vez mais computadores para todas as atividades de escrita, desde a pré-escola”. Mesmo assim, ele defende a importância de possuir as duas habilidades de escrita: manuscrita cursiva e escrita digitalizada, pois acredita que a falta de uma delas “significa uma restrição para a vida de um indivíduo no mundo de hoje”. Além disso, Cagliari diz que é uma vantagem cultural dominar todas as formas.

Para o presidente do Instituto Alfa e Beto, a escola precisa ser prudente e esperar a escrita desaparecer primeiro antes de agir. Sobre o uso da forma cursiva ainda nos dias de hoje, declara: “A letra cursiva é mais eficiente: você raramente tira o lápis do papel. Esta é a única razão para dominá-la. Mas é uma razão muito forte. É preciso ter muita prudência para não descartar a sabedoria e a experiência acumulada pela humanidade.”

Com relação às habilidades motoras que escrever com letras concatenadas proporciona, todos são unâmimes em dizer que não existe uma perda de coordenação no desenvolvimento do aluno que não pratica a escrita cursiva. Esta capacidade é aprimorada em diversas outras atividades escolares. Para responder a pergunta sobre se ainda vale a pena reservar tempo em sala de aula para ensinar a letra cursiva, é preciso “ter bola de cristal”. Existem muitos indícios de que o uso da escrita manuscrita está desaparecendo, sobretudo quando se olha para o mundo do trabalho e para o aumento progressivo dos computadores nas escolas. Porém, ninguém sabe qual é o momento certo de abandonar um conhecimento em prol de outros. O mais importante por enquanto é ponderar sobre a questão para ter a capacidade de se adaptar às mudanças que afetam a sociedade e, consequentemente, não podem ser ignoradas pela escola. 

(Yannik D´elboux)

Disponível em: espaçoalfaletrar.blogspot.com.br. Acesso em 25 de maio de 2012.
Ensino da letra cursiva para crianças em alfabetização divide a opinião de educadores
       Deve-se ou não exigir que as crianças escrevam com letra cursiva? A questão, que divide educadores e semeia insegurança entre pais, está -- ao lado da pergunta sobre o ensino da tabuada-- entre as mais ouvidas pela consultora em educação e pesquisadora em neurociência Elvira Souza Lima. A resposta, porém, não é trivial.
       Quatro ou cinco décadas atrás, a dúvida seria inconcebível. Escrever à mão era só em cursiva e, para garantir que a letra fosse legível, os alunos eram obrigados desde cedo a passar horas e horas debruçados sobre os cadernos de caligrafia.
Luiz Carlos Murauskas/Folha Imagem

  Veio, contudo, a pedagogia moderna, em grande parte inspirada no construtivismo de Piaget, e as coisas começaram a mudar. O que importava era que o aluno descobrisse por si próprio os caminhos para a alfabetização e a escrita proficiente. Primeiro os professores deixaram de cobrar aquele desenho perfeito. Alguns até toleravam que o aluno levantasse o lápis no meio do traçado. Depois os cadernos de caligrafia foram caindo em desuso até quase desaparecer.
       O segundo golpe contra a cursiva veio na forma de tecnologia. A disseminação dos computadores contribuiu para que a letra de imprensa, já preponderante, avançasse ainda mais. Manuscrever foi-se tornando um ato cada vez mais raro.
         No que parece ser o mais perto de um consenso a que é possível chegar, hoje a maior parte das escolas do Brasil inicia o processo de alfabetização usando apenas a letra de forma, também chamada de bastão.
     Tal preferência, como explica Magda Soares, professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG, tem razões de desenvolvimento cognitivo, linguístico: "No momento em que a criança está descobrindo as letras e suas correspondências com fonemas, é importante que cada letra mantenha sua individualidade, o que não acontece com a escrita "emendada' que é a cursiva; daí o uso exclusivo da letra de imprensa, cujos traços são mais fáceis para a criança grafar, na fase em que ainda está desenvolvendo suas habilidades motoras".
       O que os críticos da cursiva se perguntam é: se essa tipologia é cada vez menos usada e exige um boa dose de esforço para ser assimilada, por que perder tempo com ela? Por que não ensinar as crianças apenas a reconhecê-la e deixar que escrevam como preferirem? Essa é a posição do linguista Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paraná, para quem a cursiva se mantém "por pura tradição". "E você sabe que a escola é cheia de mil regras sem qualquer sentido", acrescenta.
       A pedagoga Juliana Storino, que coordena um bem-sucedido programa de alfabetização em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, é ainda mais radical: "Acho que ela [a cursiva] é uma das responsáveis pelo analfabetismo em nosso país. As crianças além de decodificar o código da língua escrita (relação fonema/ grafema) têm também de desenvolver habilidades motoras específicas para "bordar' as letras. O tempo perdido tanto pelo aluno, como pelo professor com essa prática, aliada ao cansaço muscular, desmotivam o aluno a aprender a ler e muitas vezes emperram o processo".
     Esse diagnóstico, entretanto, está longe de unânime. O educador João Batista Oliveira, especialista em alfabetização, diz que a prática da caligrafia é importante para tornar a escrita mais fluente, o que é essencial para o aluno escrever "em tempo real" e, assim, acompanhar a escola. E por que letra cursiva? "Jabuti não sobe em árvore: é a forma que a humanidade encontrou, ao longo do tempo, de aperfeiçoar essa arte", diz.
     Magda Soares acrescenta que a demanda pela cursiva frequentemente parte das próprias crianças, que se mostram ansiosas para começar a escrever com esse tipo de letra. "Penso que isso se deve ao fato de que veem os adultos escrevendo com letra cursiva, nos usos quotidianos, e não com letras de imprensa".
     Para Elvira Souza Lima, que prefere não tomar partido na controvérsia, "os processos de desenvolvimento na infância criam a possibilidade da escrita cursiva". A pesquisadora explica que crianças desenhando formas geométricas, curvas e ângulos são um sério candidato a universal humano. Recrutar essa predisposição inata para ensinar a cursiva não constitui, na maioria dos casos, um problema. Trata-se antes de uma opção pedagógica e cultural.
    Souza Lima, entretanto, lança dois alertas. O tempo dedicado a tarefas complementares como a cópia de textos e exercícios de caligrafia não deve exceder 15% da carga horária. No Brasil, frequentemente, elas ocupam bem mais do que isso.
    Ainda mais importante, não se deve antecipar o processo de ensino da escrita. Se se exigir da criança que comece a escrever antes de ela ter a maturidade cognitiva e motora necessárias (que costumam surgir em torno dos sete anos) o resultado tende a ser frustração, o que pode comprometer o sucesso escolar no futuro.
    O que a ciência tem a dizer sobre isso? Embora o processo de alfabetização venha recebendo grande atenção da neurociência, estudos sobre a escrita são bem mais raros, de modo que não há evidências suficientes seja para decretar a morte da cursiva, seja para clamar por sua sobrevida.
     Há neurocientistas, como o canadense Norman Doidge, que sustentam que a escrita cursiva, por exigir maior esforço de integração entre áreas simbólicas e motoras do cérebro, é mais eficiente do que a letra de forma para ajudar a criança a adquirir fluência.

     Outra corrente de pesquisadores, entretanto, afirma que, se a cursiva desaparecer, as habilidades cognitivas específicas serão substituídas por novas, sem maiores traumas.

                     

Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u736314.shtml>.Acesso em 25 de maio de 2012.

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Texto Adriana Carvalho
http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/letra-feia-problema-681106.shtml